A REPRESENTAÇÃO DO MINISTÉRIO DA DEFESA

NA COMISSÃO DE ANISTIA¹

Vanderlei Teixeira de Oliveira

Capitão-de-Mar-e-Guerra Intendente, na Reserva Remunerada da Marinha

Gerente no Departamento de Saúde e Assistência Social da SEORI/MD

Membro-Titular da Comissão de Anistia/MJ

 

O representante do Ministério da Defesa - MD na Comissão de Anistia é uma previsão legal que se encontra presente desde o início do processo, isto é: desde a Medida Provisória nº 2.151, de 31 de maio de 2001.

 

Consta atualmente do art. 12, § 1º, da Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002.

 

A primeira questão a suscitar é: porque precisa de um representante do MD na Comissão de Anistia. Acredito que tenha sido por bom senso que fizeram constar um representante do MD, bom senso que mandava colocar na Comissão alguém que por conhecer a legislação militar pudesse garantir aos anistiados militares que a eles se aplicasse aquela legislação de forma apropriada e garantidora dos direitos que são característicos da carreira militar.

 

Cabe, portanto, ao representante do MD na Comissão de Anistia examinar os processos que lhe couberem analisar com total isenção de ânimo, garantindo acima de tudo a aplicação da Lei de Anistia de forma justa.

 

O primeiro representante do MD foi o Dr. Geraldo Camilo Alves, cuja passagem pela Comissão de Anistia se deu no período de 21/08/01 a 29/04/02.

 

Em virtude do falecimento deste primeiro representante do MD assumi a função de Conselheiro na Comissão de Anistia a partir de outubro de 2002.

 

Entendo a anistia como um processo de pacificação que só se completa quando o próprio anistiado também perdoa o Estado que o oprimiu e o atingiu de forma arbitrária no passado.

 

É interessante ressaltar a dicotomia da representação do MD feita por um militar; ora olhado com desconfiança pelos anistiados por “representar os interesses das Forças Armadas”, ora visto com desconfiança pelas Forças Armadas por defender a aplicação da Lei de Anistia de forma isenta e consoante com os princípios de anistia reconhecidos internacionalmente.

 

Abordagem das questões principais que afligiram a Comissão de Anistia (e o representante do MD) no início das suas atividades.

 

a) A anistia dos cabos da Aeronáutica.

 

A controvertida questão da anistia dos Cabos da Aeronáutica foi a primeira grande questão

enfrentada pela Comissão nesta atual conformação presidida pelo Dr. Marcello Lavenère Machado, tendo como Ministro da Justiça o Dr. Márcio Thomaz Bastos.

 

Cabe ressaltar que, por uma infeliz coincidência durante a ausência do representante do MD, em virtude do falecimento do Dr. Geraldo, cerca de 500 processos de Cabos da Aeronáutica foram analisados pela Comissão anterior e tiveram suas decisões publicadas em Diário Oficial de forma errada.

 

Dois tipos de erro ocorreram naquela ocasião: primeiro, foram anistiadas algumas pessoas que não se enquadravam nos mandamentos da Lei de Anistia; e, segundo, algumas anistias concederam promoções além da graduação a que os militares conseguiriam atingir.

 

Justamente por não estarem coerentes com o convencimento atual da Comissão, o Ministro da Justiça tomou a iniciativa de abrir processo administrativo para cancelamento das anistias concedidas erradamente.

 

De forma resumida explica-se, em seguida, a questão da anistia dos Cabos da Aeronáutica dentro do convencimento da Comissão de Anistia na sua conformação atual.

 

Até 12 de outubro de 1964 os engajamentos e reengajamentos do serviço militar eram regulamentados pela Portaria nº 570, de 1954. Por aquela Portaria o militar tinha direito a ilimitados reengajamentos, até completar os 10 (dez) anos de serviço que caracterizavam a aquisição da estabilidade no serviço público.

 

Muitos dos militares nesta situação eram Cabos e continuavam Cabos até completarem o tempo necessário para pedir transferência para a inatividade (25/30 anos de serviço).

 

Nesta situação, existia em 1964 uma grande quantidade de Cabos de idade avançada e sem nenhuma perspectiva de carreira na Aeronáutica devido a sua baixa instrução. Baixa instrução que, por outro lado, era conseqüência da baixa remuneração dos Cabos em conjunção com outros aspectos sociais, tais como: moradia longe do local de trabalho, necessidade de dar assistência à família, etc.

 

Após o golpe militar de 31 de março de 1964 a Aeronáutica determinou ao seu Estado-Maior que realizasse estudos com a finalidade de resolver o problema dos “Cabos velhos”.

 

Ora, a Aeronáutica precisaria fazer uma reformulação administrativa dos seus quadros de forma a impedir que tantos Cabos continuassem em serviço por muito tempo. Se a providência tivesse sido tomada em uma conjuntura de normalidade, certamente não se caracterizaria qualquer motivação política no desligamento dos Cabos.

 

Porém a Aeronáutica decidiu fazer a reforma na seqüência da tomada do poder pelos militares. Os expedientes que transitaram pela Força, naquela ocasião, eram reservados e continham informações que levaram a Comissão a crer que ela fez a reformulação que teria que fazer, mais cedo ou mais tarde, e além disto, aproveitou para se livrar de centenas de “Cabos velhos” que eram considerados problemas, devido à liderança que exerciam ante os soldados e Cabos mais novos.

 

Assim nasceu a Portaria nº 1104, de 12 de outubro de 1964.

 

Tendo pacificado o entendimento de que os Cabos que estavam prestando serviço à Aeronáutica, quando do advento da Portaria nº 1104/64, foram atingidos por motivação política, restava à Comissão de Anistia estabelecer a graduação que aqueles militares atingiriam no correr da sua carreira.

 

Nestes casos verifica-se que à luz da legislação anterior os Cabos continuavam em serviço e muitos passavam para a inatividade nesta mesma graduação. Outra grande quantidade de Cabos foi beneficiada pelo Decreto nº 68.951, de 19 de julho de 1971, que criou o Quadro Complementar de Terceiros-Sargentos, com a finalidade de permitir que atingissem a graduação de Terceiro-Sargento.

 

Este mesmo Decreto continha a previsão de que a Aeronáutica proporcionaria um estágio de aperfeiçoamento aos militares do criado Quadro Complementar de Terceiros-Sargentos, com a finalidade de permitir-lhes a ascensão de pelo menos mais uma graduação, a de Segundo-Sargento.

 

Assim, a Comissão de Anistia passou a reconhecer o direito dos Cabos da Aeronáutica à promoção de Segundo-Sargento, com direito a indenização mensal permanente e continuada igual aos proventos de Primeiro-Sargento. O direito aos proventos da graduação imediatamente superior consta da Lei nº 6.880, de 1980, atual Estatuto dos Militares.

 

A caracterização deste direito, no entanto, é muito precisa. Não basta ter servido à Aeronáutica durante a vigência da Portaria nº 1.104/64. Um conjunto de condições tem de ser atendido, de forma concomitante, para que o anistiando tenha reconhecida a sua anistia:

a) estar servindo à Aeronáutica quando da edição da Portaria nº 1.104/64²;

b) completar 8 (oito) anos de serviço;

c) estar na graduação de Cabo.

 

Não preenchendo qualquer uma destas condições, o anistiando não tem reconhecida a motivação política do seu desligamento, por não se enquadrar nos requisitos previstos nos expedientes reservados que deram origem à Portaria nº 1.104/64.

 

b) As promoções das praças aos postos da carreira de oficial.

 

Verifica-se que nas anistias anteriores as Forças Armadas concederam as promoções previstas nas leis, impondo uma restrição às praças que teriam a possibilidade de ascender à carreira de Oficial.

 

A interpretação das Forças Armadas levava em consideração que se o militar fosse praça, no momento da punição, seria promovido à maior graduação da carreira de praças, se fosse

oficial seria promovido ao posto mais alto previsto para o quadro de Oficiais ao qual pertencia.

 

Dentro deste entendimento, se a praça já houvesse passado para a carreira de Oficial, quando da punição, alcançaria o posto mais alto previsto para o seu quadro de Oficial.

 

Por conseguinte, aquela praça que ainda não houvesse passado para a carreira de oficial, quando da punição, alcançaria no máximo a graduação de suboficial/subtenente, maior graduação da carreira de praças.

 

Aqui há de se considerar a informação de que o recrutamento para certos quadros da carreira de Oficial era feito dentre os Sargentos que atendessem a certos requisitos, entre os quais citam-se:

 

1) ser aprovado em concurso para a carreira de Oficial;

 

2) ser aprovado em curso de formação de Oficial.

 

Nas instâncias judiciais ficaram transparentes duas linhas de convencimento.

 

No Superior Tribunal de Justiça - STJ, uma interpretação mais ampla reconhecia o direito das praças terem acesso à carreira de Oficial e de serem promovidas ao posto mais elevado previsto para o quadro de Oficiais ao qual pertenceriam.

 

No Supremo Tribunal Federal - STF, no entanto, prevalecia o entendimento igual ao das Forças Armadas, isto é: se o militar fosse praça ao ser punido, chegaria, no máximo, a Suboficial/Subtenente; se fosse Oficial, teria direito à promoção ao posto mais elevado previsto para o seu quadro de Oficial.

 

No início a Comissão optou pela linha de convencimento do STJ e concedeu promoções absolutamente irreais, por contrariar o conceito de paradigma constante da Lei nº 10.559, de 2002. Uma voz se contrapunha às concessões em todas as sessões de julgamento, a do representante do Ministério da Defesa, cuja linha de convencimento era a do STF.

 

Ficou tão constrangedora a posição do Representante do MD que a Comissão decidiu pedir à Advocacia-Geral da União² para que se pronunciasse sobre o assunto, para confirmar que a anistia da Lei nº 10559/02 tratava-se de nova anistia, mais ampla, concedida dentro da constitucionalidade pelo Congresso Nacional. Não havia, assim, nenhum inconveniente de que a Comissão de Anistia firmasse convencimento próprio sobre a questão, sem a preocupação de contrariar o Tribunal máximo do país, cujas decisões estavam pautadas em leis de anistia anteriores.

 

Restava ainda a questão da promoção. Qual seria o posto mais justo a conferir àqueles militares que foram impedidos de ingressar e seguir as carreiras nos Quadros de Oficiais Especialistas, na Aeronáutica, e nos Quadros de Oficiais Auxiliares, na Marinha e no Exército.

 

A Comissão foi buscar socorro no § 4º do art. 6º da Lei nº 10.559/02, que estabelece o conceito de paradigma de forma diferente daquele convencimento do STJ.

 

Para o STJ, se um militar da turma de formação do anistiando chegou ao posto mais alto, ele também chegaria.

 

A Comissão entendeu que o anistiando chegaria ao posto em que a maioria dos militares da

sua turma de formação chegou.

 

O conceito de paradigma adotado pela Comissão é estatístico. Verificou-se que a probabilidade do militar ser promovido para postos ou graduações acima da média da sua turma de formação decresce rapidamente.

 

A adoção de uma regra objetiva, negociada com os anistiados, foi a solução encontrada pela Comissão de Anistia, que passou a conceder aos Sargentos atingidos por atos de motivação política as promoções ao posto de Capitão, com indenização mensal, permanente e continuada, de valor igual aos proventos de Major. O direito aos proventos da graduação imediatamente superior consta da Lei no 6.880, de 1980, atual Estatuto dos Militares.

 

Estas foram as questões principais que a Comissão de Anistia teve de resolver para poder dar andamento aos trabalhos concernentes à anistia dos militares.

 

Como conseqüência destas decisões a Comissão de Anistia, neste momento, analisa os últimos requerimentos de anistia de militares, sendo previsível que no próximo ano não se justificará mais a existência de uma Câmara especializada na análise dos requerimentos dos militares.

 

Notas da Revista Jurídica do Ministério da Defesa – RJMD e do articulista

 

¹ Nota RJMD – Texto utilizado pelo CMG (IM) Vanderlei Teixeira de Oliveira no II Simpósio Jurídico do Ministério da Defesa.

 

² Nota do articulista – Com relação aos Cabos da Aeronáutica que entraram para servir após a edição da Portaria nº 1.104/64 a AGU também se manifestou por meio da Nota Preliminar nº AGU/JD-3/2003 limitando a abrangência da SÚMULA ADMINISTRATIVA N.º 2002.07.0003 - CA que diz “A Portaria n.º 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo Senhor Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção, de natureza exclusivamente política”. No parágrafo 15 da Nota Preliminar citada a AGU explica: “Ocorre que as Praças que ingressaram na Força Aérea após a edição da Portaria nº 1.104-GM5, a ela se submetem originariamente, de forma genérica e impessoal. A Portaria, em relação a essas Praças, é ato administrativo pré-existente destinado a regular a permanência no serviço militar. Não há como considerá-la ato de exceção nessa hipótese”.

 

³ Nota RJMD – A primeira manifestação da AGU sobre a matéria se deu no Parecer nº AGU-JD-1/2002, que tinha a seguinte conclusão: “Assim, não resta dúvida de que a reparação econômica a que fará jus o militar anistiado deve ser equivalente aos valores que teria percebido se tivesse permanecido em atividade, consideradas todas as promoções a que faria jus, independentemente do atendimento de requisitos objetivos, excluídas, tão-somente, aquelas promoções que dependam do atendimento de requisitos subjetivos” (adotado pelo Advogado-Geral da União através do Parecer no JB-3/2002, que foi aprovado pelo Presidente da República em 30/12/2002). Posteriormente, revendo o posicionamento adotado no Parecer nº AGU-JD-1/2002, foi emitido o Parecer no AGU-JD-1/2003 que restou assim ementado: ”Militar anistiado – Promoção – Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002 – Inovação em relação ao art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – Inexigibilidade da satisfação de condições incompatíveis com a situação pessoal do beneficiário” (adotado pelo Advogado-Geral da União através do Parecer nº AC-3/2003, que foi aprovado pelo Presidente da República em 21/10/2003).

 

Publicado na Revista Jurídica do Ministério da Defesa nº 4, de 30 de novembro de 2005.

 

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