HOMENAGEM PÓSTUMA AO MEU PAI ADOTIVO

 

Nesta sexta-feira eu me verei perdendo-o outra vez.

Seus olhos tristes a me fitarem quase apagados,

Como se me procurasse para, no derradeiro instante,

Me dizer algo que havia esquecido.

Minha pobre irmã tendo um ataque de nervos,

Nervos tão submetidos às tensões

Resultantes do longo tempo que lhe emprestara

No acompanhamento de suas dores.

Sua mão na minha, uma vela,

Surgida não sei de onde.

Ir buscar seu esquife, já encomendado,

E vir com ele,

Tão grande,

Tão preto,

Tão fúnebre,

Batendo atrás, numa Rural.

Segurá-lo,

Cerrar seus olhos,

Que ficaram abertos

Como se estivesse com medo de ser surpreendido,

E colocá-lo em sua última morada.

Correr, avisar mamãe,

Apanhar suas roupas,

Seu terno preto,

Também reservado, como sempre pedira.

Que nó que eu sinto,

Que aperto no coração.

Acompanhá-lo até o fim,

Até o fim à sua direita,

Onde sempre foi o meu lugar.

Para ficar ali, pertinho, até o último instante,

Eu seria até capaz de brigar.

Velório.

Todos os seus amigos,

E também os inimigos,

Desfilando à sua frente.

Quanto nos comunicamos naqueles cinco dias.

Conversamos mais do que em toda nossa vida.

Eu lhe falei dos meus planos e dos meus sonhos.

E você, com tanta esperança, me contava

Que no final do meu curso

Me daria de presente

O carro que sempre sonhara me dar.

Sonhos, sonhos.

Eu já sabia que nunca chegaríamos lá.

Você já estava perdido.

 

Ciúmes de mim.

Você sentiu ciúmes

E me pediu para não sair de perto de si,

Não queria dividir a minha presença

Com aquele que era meu pai de geração.

Sussurrada frase que cala até hoje dentro de mim:

“Eu queria tanto te ver tenente

E agora, que estamos quase no fim,

Eu não vou te ver”.

Minhas cartas guardadas com tanto carinho,

Numa caixinha dentro do cofre

Como se fossem preciosos troféus,

Sempre exibidas com muito orgulho

E depois alojadas em local seguro

Onde ninguém as poderia roubar.

Falei-lhe de minha Gina e você gostou,

Aprovou e nos desejou felicidades.

Todos estes acontecimentos

Tem hora que desfilam em minha mente

Como numa fita cinematográfica.

São tão reais,

Foram momentos vividos com tamanha intensidade

Que me marcaram para sempre.

Meu grande amigo,

Meu grande pai,

Que não me gerou, mas me criou.

Hoje, mirando-me no espelho de suas virtudes

Persisto acanhadamente em vida

Como se não merecesse sequer beijar-lhe os pés

Tamanha sempre foi a sua magnitude

Embora enrudecido pela sua pouca formação.

Nesta sexta-feira,

Com grande saudade,

Só me restará sua lembrança.

Descansa em paz.

 

 

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